terça-feira, 21 de outubro de 2008

O Funcionário Adamastor

Ao ouvir o som da flauta, naquela manhã, senti uma fisgada no peito. A sensação causou-me tanta angústia que, inconscientemente, desejei a morte. Há anos convivi diariamente com aquele suave som. Meu patrão, John, cujo nome fora inspirado no do presidente norte-americano assassinado, insistia em tocar a flauta. Para ele, era uma espécie de terapia que tornava o trabalho dos funcionários mais agradável. Acreditava estar influindo diretamente na produtividade e, conseqüentemente, no lucro da empresa. No entanto, sempre desconfiei de tais intenções. Sabia que, utilizada de outra forma, a flauta poderia ser um excelente instrumento de tortura.

John era do signo de Gêmeos. Seu humor assemelhava-se à volatilidade do mercado financeiro. Se o timão ganhasse, poderia dizer: “Bom dia, Adamastor. Como foi o fim de semana?”. E, entre risos e carícias, pediria que começássemos a trabalhar. Mas, se o seu superior o encostasse na parede: “O que está acontecendo aqui? Vocês estão com algum problema? Eu quero números!”. E, com os olhos esbugalhados, simularia um corte na garganta. Nós sabíamos que qualquer deslize resultaria numa rápida substituição. Mesmo as funcionárias, por quem tinha maior apreço, corriam esse risco. Toda tarde, depois de fornicar com elas, passava pela minha baia e dizia: “Esses instintos primitivos hão de me matar”. Eu não gostava de aforismos.

Meu trabalho consistia, na maior parte do tempo, em digitar Ctrl + c e Ctrl + v, ligar para os clientes e pesquisar coisas inúteis. Nada que um Chimpanzé não pudesse fazer. Com exceção de problemas nas cordas vocais, na vista, na audição, tendinites e câimbras, a função não exigia maior esforço. Às vezes ficávamos sem ter o que fazer, pois éramos eficientes. Mas o ócio não era bem visto pela empresa. O funcionário ocioso deveria ser desligado urgentemente. Então, começávamos a limpar o chão, para que a mais-valia relativa fosse executada pelo nosso patrão.

Na empresa havia muitos rumores trágicos. A senhora responsável pelo almoxarifado trabalhava lá desde o primeiro dia. Sabia de todas as estórias e acontecimentos. Nos intervalos cronometrados, quando eu saía para fumar um cigarro, ela não hesitava em contá-las. Há dez anos, um funcionário se jogou do décimo quinto andar. O motivo? Ninguém nunca soube. Outro, com 36 anos, fez de refém a mulher que o traíra com o porteiro e, em seguida, deu um tiro contra a própria têmpora. Mas, entre tantos casos, o que me despertou maior curiosidade foi o da estagiária que virou um vegetal. Depois de 5 meses trabalhando ao som da flauta, Suzana ficou paralisada em sua cadeira, sem nenhuma reação.

Naquela manhã, tive um mau pressentimento. O silêncio das vozes entrelaçava-se com a batida dos teclados. Não se ouvia mais a leveza da repugnante flauta, mas o mórbido ritmo de uma canção fúnebre. Tudo parecia estar entrevado como Suzana, embora não parássemos de labutar. Decidi, contra a vontade do meu patrão, ir ao banheiro. Precisava lavar o rosto, olhar-me no espelho e encontrar alguma coisa. Nesse momento, invejei a onisciência da lua, sua capacidade de iluminar as trevas e, principalmente, sua delicadeza ao dar lugar ao sol.

Saí do banheiro e, antes que pudesse sentar-me em minha cadeira, John gritou: “Adamastor, preciso falar com você”. Meu sangue ferveu. Lembrei dos Lusíadas e pensei que a vida é tão misteriosa quanto previsível. Caminhei até ele com a respiração ofegante. As palavras começaram a jorrar como projéteis em meu peito. Fiquei atordoado. Era o fim, sabia desde o início que era o fim. De repente, quando dei por mim, estava com as mãos modeladas no pescoço de John, não havia como soltar: eram meus instintos primitivos rogando por uma revolução.

Eu era um Chimpanzé. Demorei a descobrir isso. Quando vi o reflexo da minha imagem, acordei de um sono acomodado. Toda a apatia sumira e a inércia transformara-se em movimento. A luz, enfim, estava sobre mim. Sem maltratar ou ofuscar os meus olhos, apenas iluminando o meu caminho. E, apesar dos pesares, sempre tive a consciência de que John foi um instrumento necessário. Talvez, sem a sua presença, não haveria como me libertar da prisão da imbecilidade. No fundo, eu sentia uma profunda condolência pelo fato dele ser humano.

2 comentários:

Thiago Medeiros disse...

Conto admirável, carregado da mais profunda realidade que sonhamos diariamente tratar-se de um conto.
Mas não é. A pior das sensações é a pretensão de ouvir um conto querendo que ele seja puramente fictício e ele não ser.
Ao som da flauta, seguimos com a prostituição intelectual. Nas outras partes de tempo, tentamos nos livrar dela, ou seja, estamos todo o tempo sendo torturados pelos efeitos da flauta.
Abraço e um dia teremos ao menos uma "tortura" através de violão ou guitarra.

Thiago Teixeira disse...

Faltam-me palavras para descrever o conto. Consolo-me com "Genial"!