domingo, 22 de novembro de 2009

Minha humilde nudez

Quando eu envelhecer, só andarei nu pela casa vazia. Agora, não. Porque, embora eu tenha nascido no tempo das chacretes, do “amor livre” e da arte moderna, a nudez ainda provoca mal-estar social. Não é todo mundo que consegue se desvencilhar, da noite pro dia, de seu lifestyle. Afinal, é a identidade de muitos eus que está em jogo. Mas eu conseguirei! Desprezarei o despojamento do jeans e o estilo casual das t-shirts; recusarei o conforto do tênis shox e a elegância dos sapatos sociais. Nada de acessório, utensílios e penduricalhos. A nudez pura e simplesmente.

Até lá, a arquitetura e a engenharia conspirarão a favor deste desejo. Os prédios serão enfileirados, qual um exército napoleônico, a fim de atender à máxima dos profissionais destas áreas: “Pouca fresta, pouco espaço”. Ou seja, não haverá quem denuncie os meus atos, pois não haverá a polis, não haverá ruas do Rio nem ruas de João. A cidade será composta de prédios e mais prédios, lado a lado, frente a frente.

Se o caro leitor quiser ir da ex-Rua do Ouvidor à ex-Praça Tiradentes, terá duas opções: pegar um metrô, que continuará funcionando normalmente debaixo da terra, ou ir a pé. Na verdade, tal transporte não se assemelhará em nada com aquele costumeiro passar de pernas. Trata-se de um elevador cilíndrico, análogo às manilhas de esgoto atuais, mas muito mais sofisticado, por onde nós seremos transportados do Edifício do Ouvidor até o Edifício Tiradentes.

Todavia, é bom alertá-lo que nem todos precisarão participar deste périplo. A locomoção ficará restrita a uma espécie de neoproletariado, composta, em sua maioria, pelos entregadores de pizzas, chocolates, remédios, drogas e afins. O senhor ou a senhora, que provavelmente pertencerá à classe dos abastados, não sairá de sua residência para fazer absolutamente nada. Alimentação, saúde, trabalho, lazer, compras? Tudo feito virtualmente, em nome da praticidade. Ora, mas e a reprodução? É só escolher, via web, o embrião que mais lhe apetece, todos embalados hermeticamente.

O progresso será o redentor da nossa nudez. Seremos verdadeiramente livres, pois poderemos voltar ao tão questionado “estado de natureza”, sem precisarmos, no entanto, sujeitar à nossa liberdade a liberdade do outro. Viveremos, enfim, em harmonia plena.

Para isto ocorrer, a realidade social será travestida em reality show. As telas se multiplicarão feito coelhos insaciáveis. A casa inteira será composta de câmeras com telas, tevês com telas, computadores com telas, telefones com telas, relógios com telas e, o maior avanço tecnológico, privadas com telas.

Nossos erros e acertos passarão pelo crivo de algo que estará acima de nós. O acaso perecerá. Mas, pensando bem, essa Coisa Maior, sem vínculo divino, senhora de todas as telas, pode desaprovar a minha nudez. E, se assim o for, quando os pêlos das narinas engrossarem e os do peito, que demorei tanto tempo para cultivar, resolverem cair, quando os fios acinzentados pousarem sobre a minha cabeça e, por fim, quando meu corpo e minha visão começarem a fraquejar ao som das batucadas da vida, aí será tarde demais para a minha humilde nudez.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Lula faz política culta e com arte

Por José Celso Martinez Corrêa, em 10/11/2009

Hoje temos pela primeira vez na nossa história um corpo concreto de potencialização da cultura brazyleira: o Ministério da Cultura, e isso seu atual Ministro soube muito bem fazer, um CQD em seu texto.

Por outro lado, meu adorado Poeta Caetano, como sempre, me surpreendeu na sua interpretação de Lula como analfabeto, de fala cafajeste, abrindo seu voto para Marina Silva.

Nós temos muitas vezes interpretações até gêmeas, mas acho caetanamente bonito nestes tempos de invenção da democracia brazyleira, que surjam perspectivas opostas, mesmo dentro deste movimento que acredito que pulsa mais forte que nunca no mundo todo, a Tropicália.

Percebi isso ao prefaciar a tradução em português crioulo = brazyleiro do melhor livro, na minha perspectiva, claro, escrito sobre a Tropicália: Brutality Garden, Jardim Brutalidade, de Chris Dunn, professor de literatura Brazyleira, na Tulane University de New Orleans.

Acho, diferentemente de Caetano, que temos em Lula o primeiro presidente antropófago brazyleiro, aliás Lula é nascido em Caetés, nas regiões onde foi devorado por índios analfabetos o Bispo Sardinha que, segundo o poeta maior da Tropicália, Oswald de Andrade, é a gênese da história do Brazil. Não é o quadro de Pedro Américo com a 1ª Missa a imagem fundadora de nossa nação, mas a da devoração que ninguém ainda conseguiu pintar.

Lula começou por surpreender a todos quando, passando por cima das pressões da política cultural da esquerda ressentida, prometeica, nomeou o Antropófago Gilberto Gil para Ministro da Cultura e Celso Amorim, que era macaca de Emilinha Borba, para o Ministério das Relações Exteriores, Marina Silva para o Meio Ambiente e tanta gente que tem conquistado vitórias, avanços para o Brasil, pelo exercício de seu poder-phoder humano, mais que humano.

Phoderes que têm de sambar pra driblar a máquina perversa oligárquica, podre, do Estado brasileiro. Um estado oligárquico de fato, dentro de um Estado Republicano ainda não conquistado para a "res pública". Tudo dentro de um futebol democrático admirável de cintura. Lula não pára de carnavalizar, de antropofagiar, pro País não parar de sambar, usando as próprias oligarquias.

Lula tem phala e sabedoria carnavalesca nas artérias, tem dado entrevistas maravilhosas, onde inverte, carnavaliza totalmente o senso comum do rebanho. Por exemplo, quando convoca os jornalistas da Folha de S. Paulo a desobedecer seus editores e ouvir, transmitindo ao vivo a phala do povo. A interpretação da editoria é a do jornal e não a da liberdade do jornalista. Aí , quando liberta o jornalista da submissão ao dono do jornal, é acusado de ser contra a liberdade de expressão. Brilha Maquiavel, quando aceita aliança com Judas, como Dionísios que casa-se com a própria responsável por seu assassinato como Minotauro, Ariadne. É realmente um transformador do Tabu em Totem e de uma eloquência amor-humor tão bela quanto a do próprio Caetano.

Essa sabedoria filosófica reflete-se na revolução cultural internacional que Lula criou com Celso Amorim e Gil, para a política internacional. O Brasil inaugurou uma política de solidariedade internacional. Não aceita a lógica da vendetta, da ameaça, da retaliação. Propõe o diálogo com todos os diabos, santos, mortais, tendo certa ojeriza pelos filisteus como ele mesmo diz. Adoro ouvir Lula falar, principalmente em direto com o público como num teatro grego. É um de nossos maiores atores. Mais que alfabetizado na batucada da vida, lula é um intérprete dela: a vida, o que é muito mais importante que o letrismo. Quantos eruditos analfabetos não sabem ler os fenômenos da escrita viva do mundo diante de seus olhos?

Eu abro meu voto para a linha que vem de Getúlio, de Brizola, de Lula: Dilma, apesar de achar que está marcando em não enxergar, nisto se parece com Caetano, a importância do Ministério da Cultura no Governo Lula. Nos 5 dedos da mão em que aponta suas metas, precisa saber mais das coisas, e incluir o binômio Cultura & Educação.

Quanto a Marina Silva, quando eu soube que se diz criacionista, portanto contra a descriminalização do aborto e da pesquisa com células-tronco, pobre de mim, chumbado por um enfarte grave, sonhando com um coração novo, deixei de sequer imaginar votar nela. Fiz até uma cena na Estrela Brasyleira a Vagar - Cacilda!! para uma personagem, de uma atriz jovem contemporânea que quer encarnar Cacilda Becker hoje, defendendo este programa tétrico.

Gosto muito de Dilma, como de Caetano, onde vou além do amar, vou pra Adoração, a Santa adorada dos deuses. Acho a afetividade a categoria política mais importante desta era de mudanças. "Amor Ordem e Progresso." O amor guilhotinado de nossa bandeira virou um lema Carandiru: Ordem e Progresso, só.

Apreendi no livro de Chris Dunn que os americanos chamam esta categoria de laços homossociais, sem conotação direta com o homoerotismo, e sim com o amor a coisas comuns a todos, como a sagração da natureza, a liberdade e a paixão pelo amor energia, santíssima eletricidade. Sinto que nessas duas pessoas de que gosto muito, Caetano e Dilma, as fichas da importância cultural estratégica, concreta, da Arte e da Cultura, do governo Lula, ainda não caíram.

A própria pessoa de Lula é culta, apesar de não gostar, ainda, de ler. Acho que quando tiver férias da Presidência vai dedicar-se a estudar e apreender mais do que já sabe em muitas línguas. Até hoje ele não pisou no Oficina. Desejo muito ter este maravilhoso ator vendo nossos espetáculos. Lula chega à hierarquia máxima do teatro, a que corresponde ao papa no catolicismo: o palhaço. Tem a extrema sabedoria de saber rir de si mesmo. Lula é um escândalo permanente para a mente moralista do rebanho. Um cultivador da vida, muito sabido, esperto. Não é à toa que Obama o considera o político mais popular do mundo.

Caetano vai de Marina, eu vou de Dilma. Sei que como Lula ela também sente a poesia de Caetano, como todos nós, pois vem tocada pelo valor da criação divina dos brazyleiros. Essa "estasia", Amor-Humor, na Arte, que resulta em sabedoria de viver do brasileiro: Vida de Artista. Não há melhor coisa que exista!

Lula faz política culta e com arte. Sabe que a cultura de sobrevivência do povo brasileiro não é super, é infra estrutura. Caetano sabe disso, é uma imensa raiz antenada no rizoma da cultura atual brazyleira renascente de novo, dentro de nós todos mestiços brazyleiros. Fico grato a Caetano ter me proporcionado expor assim tudo que eu sinto do que estamos vivendo aqui agora no Brasil, que hoje é um país de poesia de exportação como sonhava Oswald de Andrade, que no Pau Brasil, o livro mais sofisticado, sem igual brazyleiro canta:

"Vício na fala
Pra dizerem milho dizem mio
Pra melhor, dizem mió
Para telha, dizem teia
Para telhado, dizem teiado
E vão fazendo telhado"

SamPã, 6 de novembro, sob o signo de escorpião, sexo da cabeça aos pés, minha Lua de Ariano, evoéros!

Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo e extraído do site www.vermelho.org.br

sábado, 10 de outubro de 2009

Fósseis do totalitarismo

A América Latíndia, lugar fictício descrito pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão no romance “Zero”, cuja instabilidade socioeconômica e o regime autoritário integravam um mosaico tragicômico, assemelha-se, vez e outra, com a nossa América Latina. Aqui, os ideais reacionários, aparentemente cadavéricos, ressurgem das profundezas, exortados pela grande mídia dos trópicos, a fim de servirem de alegoria a um infindável baile momesco. Na atual conjuntura, o golpe de Estado perpetrado em Honduras, embora não tenha agradado à comunidade internacional, foi ovacionado pela imprensa tupiniquim.

Não há nenhuma novidade neste fato. Pois, como bem analisou o colunista Mauricio Dias (Carta Capital, 2/9/2009), o professor aposentado de teoria política da UFRJ Wanderley Guilherme dos Santos, renomado cientista político, já havia dito que “a exemplo de toda a imprensa, denominada grande, latino-americana, jamais hesitou em apoiar todas as tentativas de golpe de Estado, quando estas significavam a derrubada de presidentes populares ou o fechamento de congressos de inclinação mais democrática”.

Ora, esta foi justamente a atitude tomada por diversos veículos diante da instauração, no último dia 28 de julho, de um governo militar em Honduras, sob o comando de Roberto Micheletti, e da consequente deposição do presidente José Manuel Zelaya. A revista Veja, por exemplo, ainda que seja dissimulada no que diz respeito à sua função social, não poupou esforços para evidenciar o seu caráter ultra-conservador.

O império (contra)ataca

Na capa da edição do dia 30 de setembro, a revista semanal da editora Abril exibiu a seguinte manchete: “O Imperialismo Megalonanico”, em referência ao asilo dado pela embaixada brasileira em Tegucigalpa ao presidente Zeleya. Segundo a Veja, agindo desta forma, o Brasil, supostamente instigado pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, estaria contrariando sua “tradição diplomática”.

Em meio às linhas grotescas da matéria de capa, o leitor pode se deparar com vaticínios do tipo: “Com as eleições marcadas para o próximo dia 29 de novembro, o governo interino [leia-se, ditadura] que derrubou Zelaya se preparava para reconduzir o país à normalidade democrática”. Coincidentemente, este fora o mesmo discurso utilizado pelos generais brasileiros – e largamente difundido pela imprensa – na ocasião do golpe de 1964 que, talvez por força do destino, perdurou até 1985.

Apoiando-se na Constituição hondurenha, cujo artigo 374 torna inválido qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a renovação do mandato presidencial, os golpistas acusam Manuel Zelaya de tentativa de continuísmo. Para o professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano, em artigo publicado na Folha de S.Paulo (30/9/2009), “Zelaya tem afirmado que sua proposta é de possibilitar a reeleição de futuros presidentes, e não dele próprio. Assim, ele não teria apoiado, promovido ou incitado o continuísmo do atual presidente – ele próprio”.

Salvo raras exceções, o importante papel desempenhado pelo governo Lula na geopolítica mundial tem recebido total desprezo pela mídia. A boa desenvoltura do País diante de uma das piores crises econômicas dos últimos anos, a astuciosa política externa, que inclui o caso de Honduras, com vistas a adquirir uma vaga no Conselho de Segurança da ONU e, sobretudo, as transformadoras, embora insuficientes, ações sociais de nada valem aos megalonanicos oligarcas das comunicações.

A imprensa nativa tem todo o direito de ter opiniões e preferências políticas. O problema é que, conforme afirmara Wanderley Guilherme, “há muito da realidade que não está na imprensa e há muito do que está na imprensa que não está na realidade”. Resta saber se, a exemplo do país da América Central, os arqueólogos-verde-e-amarelo têm como meta a procura, incansável, de fósseis do totalitarismo.


* Texto publicado no Observatório da Imprensa