sexta-feira, 8 de agosto de 2008

De Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)


A saga do sertão está marcada na cultura nacional. Escritores como Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto transcenderam a miséria nordestina para os quatro cantos do Brasil. Mostraram um berço esplêndido caquético e desdentado. A ferida, no entanto, ficou mais exposta com outra manifestação artística: o cinema. Com o mesmo ímpeto daqueles literatos, Glauber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), revisou criticamente a realidade do Terceiro Mundo.

O filme fora visto e aclamado em vários países. As tentativas em rotulá-lo são falhas à medida que a ficção atua na complexidade do real. Literatura de cordel? Poesia? Violência? Dialética? Beleza? Sim, tudo isso. Glauber, na época com 23 anos, traduziu para a película as palavras esquecidas pelas veredas. “A origem de Deus e o Diabo... é uma língua metafórica, a literatura de cordel. No Nordeste, os cegos, nos circos, nas feiras, nos teatros populares, começam uma história cantando: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação, ou então que é imaginação verdadeira. Toda minha formação foi feita nesse clima”.

O argumento sintetiza fatos e personagens concretos da história brasileira. Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) fogem dos maus-tratos do coronel e passam a acompanhar os seguidores de Sebastião. As promessas do líder religioso significam para os fiéis o fim das trevas, o fim da fome. Mas, antes de chegar à redenção, o sofrimento e as concessões são inevitáveis. Desse modo, imersos na ilusão, o casal passa da alienação material para a espiritual. O desvario cessa quando Rosa, ao presenciar o sacrifício de uma criança, assassina Sebastião. Neste momento, entra em cena Antonio das Mortes (Maurício do Valle).

Com uma narrativa fragmentada e cortes abruptos em planos longos, Deus e o Diabo... vai além da narrativa tradicional. A serviço dos latifundiários e da Igreja Católica, Antonio das Mortes extermina os seguidores de Sebastião e persegue de forma implacável o diabo loiro Corisco, companheiro de Lampião. A parir daí, Manuel e Rosa entram para o bando de Corisco, em busca de uma nova esperança. Nessa nova fuga, a caatinga e o sol escaldante tornam a empreitada cada vez mais penosa. Manuel, com os olhos embotados pelas duras terras, sucumbiria se não fosse Rosa. Assim, a mulher surge como a luz da verdade, a salvação e um novo caminho.

Na tragédia do sertão não há heróis. Mas a relação entre explorador e explorado se perpetua no espaço e no tempo. Nas últimas cenas do filme, Antonio das Mortes mata e degola Corisco, o avesso do líder religioso. O Deus, representado por Sebastião, e o Diabo, por Corisco, estão mortos. Para Manuel e Rosa só resta fugir para o mar, longe das mazelas que os assola, longe da cruel realidade. "Nenhuma estatística pode informar a dimensão da pobreza. A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem."

2 comentários:

Bernardo Costa disse...

Quem fez a roupa do Antônio das Mortes foi a mãe do Glauber.

Já que você falou dos planos longos, te recomendo o filme "O passageiro - Profiossão repórter", de Antonioni. A cena final é um plano longo de mais de 8 minutos, um dos momentos mais célebres do cinema mundial, protagonizado pelos jovens Jack Nicholson e Maria Schineider.

Bernardo Costa disse...

Schneider