quinta-feira, 3 de abril de 2008

Rodrigo S.M, o Homem Nobre - de Clarice Lispector, A Hora da Estrela (1977)


O enigma da existência e as veleidades do homem são marcas profundas da escrita de Clarice Lispector. A Hora da Estrela, de 1977, seu último livro publicado em vida, é considerado pela crítica como o mais realista de sua vasta obra. A história da nordestina Macabéa traz à tona as mazelas de muitos brasileiros – uma realidade abordada com extrema competência por escritores como João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, e Graciliano Ramos, em Vidas Secas. Contudo, tratando-se de Clarice, um ponto de interrogação para ela mesma, o contexto social torna-se apenas um pretexto para se engendrar nas profundezas do ser.

Ao longo do livro, a história é escrita e narrada pelo seu auter-ego, Rodrigo S.M. Este explicita a dor, constrói a tortuosa trajetória e faz com que as lágrimas percorram a face maltratada de Macabéa. Mas é ele, também, que a faz sorrir. Rodrigo, além de criar uma personagem em cuja vida nada faz sentido, cria Olympico de Jesus, o avesso de Macabéa. Ambos nasceram nas duras terras do sertão, criaram-se no limbo e cresceram no lodo. Pode-se dizer que são personas do autor/narrador e, sobretudo, de Clarice. Olympico, diferentemente de Macabéa, traz na carne a perversidade do homem, seja através da ganância ou da malícia, mas as duas personagens convergem para o âmago de um “homem nobre”, um indivíduo dionisíaco, segundo conceitos do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

“O homem dionisíaco, que é em Nietzsche um sinônimo para homem trágico, é apresentado como aquele que vê que a vida, no fundo das coisas, apesar do caráter mutável dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria. Apesar, ou melhor, por causa do sofrimento inerente à vida, ele a afirma” (Brum, 1998, p. 75).

Esta afirmação da vida está presente no princípio e no fim de A Hora da Estrela com a palavra que melhor a exemplifica: sim. Foi dizendo “sim” à sua Vontade de Potência que Clarice Lispector transgrediu a realidade e tornou-se transcendente, na medida em que suas obras ganhavam vida.

Seu auter-ego, Rodrigo S.M, desmembra-se em personagens que constituem o seu eu. Assim, é evidente que o protagonista – quem agoniza em primeiro plano – é o próprio escritor. Macabéa, imersa em imagens oníricas e, aparentemente, cega a realidade, encarna a divindade de Apolo.

“Ele, segundo a raiz do nome o ‘resplendente’, a divindade da luz, reina também sobre a bela aparência do mundo interior da fantasia. A verdade superior, a perfeição desses estados, na sua contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível” (Nietzsche, 2007, p. 26).

Mas, além da pureza, Macabéa é, inconscientemente, uma mulher lasciva em seu íntimo, um lugar oculto para a própria nordestina.

Em sua obra Além do Bem e do Mal (1886), Nietzsche afirma: “(...) No homem há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo, deus-espectador e sétimo dia” (Nietzsche, 1992, p. 131-132).

Segundo o filósofo, a música é a forma artística mais elevada de celebrar a existência. Macabéa, ao ouvir uma canção no rádio chamada “Una Furtiva Lacrima”, chora pela primeira vez e celebra a vida que é inexoravelmente fugaz e paradoxal. A lágrima, assim como o gozo, é a expressão da alma.

“Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal (...). Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do grande abraço”. Estas palavras do narrador intensificam a vontade dionisíaca de afirmar a alegria de ter vivido, mesmo que na tragédia; a Vontade de Potência, na qual Rodrigo S.M encontra uma força maior para se viver em um mundo trágico, mas de beleza imensurável. Na hora da morte, como na vida, a estrela encontra a dissonância entre prazer e dor, torna-se frágil e heróica e continua a brilhar, resplandecer e embriagar o grande palco da existência. Clarice Lispector, seja na vida ou na morte, sempre será, segundo a hierarquia nietzschiana, uma aristocrata, um Homem Nobre.


Bibliografia:

BRUM, José Thomaz. O Pessimismo e Suas Vontades. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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