quinta-feira, 18 de junho de 2009

De Michelangelo Antonioni, O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964)

O paradoxo manifesta-se na sequência inicial de O Deserto Vermelho (1964). Giuliana (Mônica Vitti) passeia com o seu filho pela paisagem industrial. Ruído. O verde da sua roupa contrasta brutalmente com as cores cinzentas e mortas de Ravenna. Ruído. O silêncio, suprimido pelo som inarmônico do maquinário, surge não como complemento dialético da palavra, mas, ao contrário, como ausência e escassez desta. Novamente, a incomunicabilidade, uma das problemáticas contemporâneas, está presente nesta obra do genial cineasta italiano Michelangelo Antonioni.

A princípio, trata-se de uma crítica à modernidade que, além de ser uma das geradoras dos problemas existenciais da protagonista, não consegue – ou não pretende – coexistir com o meio ambiente. Contudo, uma análise atenciosa mostra-nos que a principal preocupação do diretor consiste em, como nos filmes anteriores, interpretar as relações interpessoais e os embates travados e dissecar o caráter, a psicologia e as neuroses da personagem retratada. “Giuliana é neurótica, evidentemente. Mas devo dizer que não é esse meio industrial e moderno que provoca a neurose. Ela já existia nessa mulher, não se sabe onde ela se originou. O meio provoca a eclosão dessa crise”, dissera à época Antonioni.

Desse modo, apesar de sabermos que Giuliana sofreu um acidente, não há descrições ou explicações do ocorrido. Sabemos, também, que ela padece de uma doença, mas não se sabe a patologia. Caímos, assim, na velha dicotomia do tudo/nada. Giuliana é a angústia que sentimos pela incapacidade de traduzi-la, é a esfinge que exige respostas.

Para que pudéssemos decifrar o enigma proposto, seria necessária a presença de indícios ou pistas nas próprias falas. Mas a dialogicidade é inexistente. Os signos serviriam como ferramentas de decodificação, mas a metáfora do “deserto” funciona perfeitamente. O envolvimento de Giuliana com o engenheiro Corrado Zeller (Richard Harris) poderia ajudá-la a curar sua quase esquizofrenia, se ele, ao contrário das aparências, não fosse uma espécie de aventureiro que, a cada tempestade, foge para as localidades mais seguras. Assim, mesmo conseguindo compreender parte daquela mulher mais do que o próprio marido Ugo (Carlo Chionetti), os diálogos entre ambos, tal como as observações, carecem de instrumentos que contribuam para o conhecimento de si.

A autorreferência é uma constante nas obras de Antonioni. Além das evidentes analogias entre A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962) – que compõem uma trilogia -, O Deserto Vermelho, seu primeiro filme colorido, remete-nos à película de 1957, O Grito. Em meio a um encontro burguês regado de vinho e de lascívia, uma das participantes ouve um grito que, a princípio, viera de uma embarcação. Apesar de todos discordarem, Giuliana também ouve o grito e, repentinamente, o devaneio volta a acometê-la.

“Não sou contra o mundo moderno. O mundo industrial simboliza um pouco o progresso e não se pode ser contra o progresso. Ademais, seria inútil. Mas eu penso que o progresso seja algo inexorável, como uma revolução: eventualmente há quem sofra, mas há quem se adapte e há quem não se adapte, o que resulta, claro, em crises”, afirmara Antonioni.

A misantropia de Giuliana é antagônica à necessidade que ela tem de conviver com o outro. Giuliana é o avesso do progesso. Giuliana é a crise, é a dissonância da homogeneidade que se alastra com a globalização. Neste sentido, Antonioni descreve – e até certo ponto prevê – as vicissitudes do mundo pós-moderno, no qual a individualidade é exaltada em detrimento do coletivo e o vazio (o deserto) da existência humana é preenchido com simulacros. Embora, em algum lugar, o vermelho continue a pulsar.

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