quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

De Machado de Assis, Quincas Borba (1891)


Enquanto o filósofo Quincas Borba explica ao amigo Rubião o porquê do cão chamar-se Quincas Borba, Machado de Assis dá o tom desta engenhosa narrativa. Seria de se suspeitar da sanidade mental de um homem senil que credita seu “dote” – ou “lote” - e sua imortalidade ao cão (desprovido de razão, é claro) e que, ainda por cima, diz: “Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler chamarão Quincas Borba ao cachorro, e...”. Todavia, o caro leitor, antes de engendrar-se pelas linhas machadianas, deve duvidar da própria racionalidade; menos pela loucura que pela complexidade das personagens inseridas, interna e externamente, neste romance.

É provável que Rubião contentar-se-ia com pouco, mas sua fidedigna amizade rendeu-lhe frutos mais adocicados: tornara-se herdeiro universal do falecido Quincas Borba. A única exigência era cuidar do pobre cachorro, tarefa nada árdua para o nosso amigo (como o narrador refere-se a Rubião, e um dos recursos estilísticos utilizados por Machado para estabelecer comunicação com o leitor), tendo em vista os benefícios que lhe traria, exceto pelo fato de, amiúde, o olhar do animal aparentemente assemelhar-se com o do antigo dono.

Antes de morrer, Quincas Borba tentara lhe ensinar sua doutrina filosófica, denominada Humanitas, resumida no seguinte aforismo: “Ao vencedor, as batatas”. Deixemos que nos esclareça o próprio pensador: “(...) Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível. (...) Assim lhe chamo porque resumo o universo, e o universo é o homem”. Não cabe aqui expor minuciosamente tal concepção, embora possamos adiantar que, compreendendo-a ou não, Rubião passou a repeti-la como lema, grito de guerra ou coisa que o valha. De ex-professor à classe abastada da noite pro dia. De fato, mesmo que não desconfiasse da generosidade do amigo, surpreendera-se com as artimanhas do destino.

Assim, na primeira oportunidade, mudara-se de Minas para o Rio (onde se encontrava a Corte). Talvez com o intuito de aproximar-se dos grandes acontecimentos políticos e culturais do país. Durante a viagem, eis que surge o trunfo machadiano, a persona feminina encarnada na bela Sofia. É interessante notar que, tanto nos primeiros romances quanto nos de sua fase madura, a mulher ganha ares de esfinge, instigando o narrador, o personagem masculino e o leitor a decifrá-la; inserindo-os, dessa forma, no jogo da sedução. Esta, segundo o sociólogo frances Jean Baudrillard, “é algo que se apodera de todos os prazeres, de todos os afetos e representações, que se apodera dos próprios sonhos para convertê-los em algo diferente de seu desenrolar primário, um jogo mais agudo e sutil cuja aposta já não tem fim nem origem, seja o de uma pulsão, seja a de um desejo” (Da Sedução, p.142). Nosso amigo não resistirá aos encantos dos “mais belos olhos do mundo”.

Nas obras de Machado todos os pormenores são de suma importância para a composição da trama. Ao analisarmos os nomes das personagens, por exemplo, verificamos a existência de elementos essenciais à decodificação da mensagem. O substantivo feminino palha, nome do marido de Sofia, consta nos dicionários qual “o colmo seco das gramíneas despojadas dos grãos”. Já o sentido figurado denota magistralmente o caráter deste burguês, que ganha o apreço de Rubião: “insignificância; qualquer coisa vistosa mais de pouco valor”. A palavra filosofia é de origem grega (philos = amigo ou que ama; sophia = sabedoria) e em seu sentido estrito designa um tipo de especulação. Ora, se a fulgurante Sofia representa o saber - o que é almejado pelo filósofo (amante da sabedoria) - e se Rubião, além de amigo, pretende tornar-se seu amante, nós temos, nessa relação, a construção da dialética platônica, na qual se sobe progressivamente do plano instável e obscuro até o plano das “idéias”, da “essência” ou da “verdade”.

Entretanto, à medida que o devaneio provocado pela fervorosa paixão toma-o de forma avassaladora, Rubião mergulha nas profundezas da ignorância, pois desconhece a si mesmo. Evidentemente, fora o corolário previsto pelo amigo Quincas Borba. Porque, como bem observara em sua parábola, “as batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância (...). A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação”.

Rubião tivera os instrumentos materiais necessários para galgar os degraus do conhecimento, mas faltou-lhe a perspicácia e a sapiência dos filósofos. Desde que fora felicitado com a notícia da herança, o ócio passou a ser seu fiel companheiro. As relações de interesse, seja político ou econômico, instauradas durante o período de prosperidade, esfacelaram-se junto com o sonho de possuir (não como cônjuge, mas como amante) Sofia, cujos fascistas artifícios de sedução também contribuíram para a derrocada de Rubião. O cão, atrelado a todos os estados de espírito do dono, sucumbira após a morte do nosso amigo. A batalha fora travada, porém não houvera combatente. E, embora a artilharia não tenha sido utilizada, o grito de guerra, no último suspiro, ainda ecoara pelas ruas de Minas Gerais: “Ao vencedor, as batatas”.

3 comentários:

Alexandre Sobral R. Horta disse...

Adoro esse grito: "Ao vencedor as batatas"

Gostaria de saber se você já leu o livro, A morte e a morte de Quincas Berros D'água...irmão, espero te encontrar na faculdade!

Bernardo Costa disse...

Leiam Machado de Assis: aí está a utilidade desta paisagem.

Bernardo Costa disse...

Como muda endereço do blog?
queria colocar meu nome.blogspot.com

Lembre-se daquele cineasta de que te falei, Billy Wilder, o fino do cinema hollywoodiano.